Eduardo GAGEIRO

GENTE

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Lisboa, 1969

Lá vai o português,
diz o mundo, quando diz,apontando umas criaturas que habitam o extremo da Europa, carregadas de História (ai Fernão Mendes, meu avô de tempestades...).

Mal nasce deixa logo de ser criança,

tem já oito séculos. Mirrado de corpo,

como é natural depois de tantos milhares de anos de charrua e viagens perdidas, deitou as raízes a uma estreita faixa de terra que fica empoleirada sobre o Atlântico a que se chama Lusitânia.

Agarra-se à Europa, quer isto dizer,

agarra-se pela ponta, pelo que sobra dela

para não ser escorraçado para os oceanos que descobriu com muita honra-e nisso não é como o coral que tem cores vivas, mercados, movimentos livres; é antes como o mexilhão, pobre e obscuro, já sem água, todo crespo, que os mares remeteram ao rochedo. (De modo que, quando a tormenta ataca a Europa, é ele o primeiro sacrificado e se anicha mais obscuro ainda...)

Entretanto resiste:

à margem. Com a dupla resistência dos olvidados.

Veste de escuro, se é que veste, debaixo de um sol africano; ou põe o capote de palha e vai atrás das cabras pelas fragas transmontanas. Pesca dos restos, lavra sargaços. Em Lisboa é mouro à esquina diante do prato trepador de escadarias e calçadas. É árabe até, dizem também; judeu às vezes, nas argúcias e nas perseguições, e há quem encontre nele qualquer coisa de grego, que é outra criatura com muitíssima História.

É um pouco assim o nosso irmão português, esse cismador.

Somos assim, bem o sabemos.

Assim, como?

Também aqui, acredita-se ou não, uma criança nasce maravilhada pela revelação do simples acto de existir. Ei-la.

Está nas fotografias de Eduardo Gageiro, com toda a claridade comovente, toda a pureza em abertura que os amateurs ditos d´art jamais conseguem transmitir quando retratam uma criança. Esta conhecemo-la ao primeiro relance-identificamo-la como nossa, quero eu dizer- é a infância no claro-escuro inconfundível da nossa realidade mais íntima e, ponto importantíssimo, tem densidade interior porque nos sugere imediatamente, referências morais, cumplicidades, recusas. Há nela a beleza difícil de um dia-a-dia que soletrámos sem darmos por isso, e agora vamos aprendê-la através de uma objectiva que é o olhar de Gageiro, tão sagaz, tão perscrutador.

Aprender uma criança. Vê-la nesta página e, logo a seguir, encontrá-la já tocada por uma indecifrável melancolia, como se de repente se tivesse apercebido das terríveis resignações com que terá de cumprir a existência. Volta-se para nós, para a objectiva, agarrada a um destroço de brinquedo, e nada pergunta, não estende sequer a mão a pedir companhia. A sua nobreza está nisso, nessa solidão indefesa. Depois, na foto seguinte encontramos velhos.

Assim. De repente, velhos.

Também eles -é de prever- fizeram a sua entrega confiante nos anos da inocência. Surgiram dos escombros, aparecendo em primeiro plano com o tal olhar silenciosamente magoado. Foram, como todas as crianças de Gageiro, a imagem da infância traída.

E agora, do pé para a mão, transformaram-se em velhos, repare-se. Velhos de que idade? Vinte, 30 anos? Sessenta? Digamos 100? De concreto o que nos mostram estas figuras surpreendidas assim no seu habitat mais espontâneo e reveladas ( reveladas como num laboratório sociológico ) pelas sínteses de Gageiro, o que elas nos contam é que mourejam por feiras e por cidades, ocupando o breve espaço de pátria que lhes cabe. Que vivem o seu espectáculo solitário, a sua felicidade elementar: o casal almoçando ao sol, a mãe amamentando o filho, o repouso da sesta... Que para lá da vida essencial (comer, dormir e procriar são constantes da temática de Gageiro) lhes resta apenas o seu módulo de morte que é a velhice, a fé numa vidente, a campa, o sobrenatural...

E no entanto, sabemo-lo de sobejo, cada idade tem uma cor própria de vida-é isso que distingue a criança do jovem, o adulto feliz do velho satisfeito. Mas não aqui, neste humilde risco de subsistir. Aqui e a esta hora, 1970, a infância desponta toldada pela sombra da velhice e isso já nos tinha dito Raul Brandão com os seus avejões da morte e do grotesco (o grotesco e certas personagens goiescas traduzem sínteses superiores em Gageiro) a ensombrarem uma paisagem humana povoada de velhos sem infância.

Quanto à idade da pujança, ao homem consolidado nos seus equilíbrios, nada se sabe. A “Difícil Arte de Ser Português”, que é afinal todo o inventário de Gageiro, só ocasionalmente e sem grande significado o poderia registar.

Regista, sim, o velho que está dentro de cada adulto-o sono. (Sono: libertação primária, compensação da carne e prefiguração da morte. Também a insistência deste motivo na obra de Gageiro propõe conotações elucidativas, penso eu...) Regista a infância que perdeu a infância, a beleza que resistiu à desventura e, para terminar, o terrível e quase macabro humor do quotidiano: “Pare, Escute e Olhe”-ordena ao cego o cartaz de uma passagem de nível; “Totalmente Automática. Señora, Usted también debe tener esta maravilla en su hogar!”, recomenda em castelhano publicitário uma legenda imposta na tenda (portuguesíssima) de uma vendedeira de castanhas. Inclusivamente, a ânsia de luz de uma fresta que permita partilhar do mundo dos outros, sendo uma ilustração quase obsessiva de Gageiro, é por vezes reforçada por um acento insólito e dramático (veja-se o rosto do velho, espritando por baixo dos pés dos semelhantes, veja-se o carregador que sobe o Chiado como se tivesse rompido com a cabeça um painel de cenário, etc.).

Esta capacidade de detectar o insólito decorre evidentemente de uma identificação activa do artista com o meio. Requer um hábil poder de “distanciação” e assenta numa acuidade crítica que só um conhecimento íntimo do ambiente pode permitir. Caso contrário, reduz-se à anedota ou ao achado superficial, o que não tem nada a ver com o significado de grande dimensão com que Gageiro sabe revestir o apontamento inesperado.

Isto, penso eu, afasta-o da abominável família dos partidários da bela patine ou do grão trabalhado e de outros efeitos clandestinos que fazem o comércio e os altares medalhados da “fotografia de cavalete”. Depois, elegendo o pormenor pelo contexto e não por atributos isolados, Gageiro põe à prova asua inconfundível óptica portuguesa, uma vez que é na síntese do apontamento e na felicidade com que se levantam associações locais verdadeiramente representativas de uma época e de uma sociedade que todos os bons fotógrafos, como todos os bons escritores, se conseguem prolongar para além do tempo e dos cosmopolitismos de circunstância.

Nada mais repugnante aos olhos do admirador de arte do que a pintura que se pretende fotografia ou da fotografia (de cavalete, passe a expressão) que se pretende pintura. Uma coisa e outra já lá vão. Como já lá vão os muitos campeões de salão que se cruzaram entre si reproduzindo cisnes desdobrados em espelhos de água, melancolias de pôr-de-sol e rostos de velhos inventariados ruga a ruga. Esses, preocupados com a realidade aparente, tinham da máquina uma ideia bastante limitada e da fotografia uma concepção ilustrativa-e numa altura em que as rivalidades convencionais da expressão plástica perderam sentido, estas ambições ingénuas não têm lugar que se lhes ofereça entre o documento e o experimentalismo.

Gageiro, por isso mesmo, define claramente o seu campo de acção. Nada de ersatzen, nada de frases “literárias” a encher a fotografia. Como a portuguesíssima Irene Lisboa, que construiu toda uma coloquial e “quotidiana”elementaridade, também ele alcançou uma difícil simplicidade de estilo, uma linguagem quotidiana (que é a do repórter), para nos transmitir uma atmosfera verdadeiramente pessoal e do nosso tempo. Daqui, desta data.

Através dele, reconhecemos que a fotografia vê o que o olhar não abrange, aquilo que a nossa atençaõ visual deixa escapar. E isso às vezes é muito. É o inventário das nossas singularidades, a contribuição para nos definirmos a nós portugueses, estas criaturas tão pouco meditadas pelo mundo e tão sobrecarregadas de História, de viagens, invernais.

Só realmente o amor e a vivência, e uma certa densidade do olhar podem fotografar um país com tamanha verdade e introduzir-nos, como Gageiro, na “Difícil Arte de Ser Português”.

José Cardoso Pires